OMO: dá medo ampliar o horizonte das marcas?
A “revolta” do músico Kiko Scornavacca (KLB) contra a nova campanha do sabão em pó da Unilever, envolvendo o debate de gêneros às vésperas do Dia das Crianças, reafirma as dificuldades extras para o marketing em tempos de hostilidade digital.
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Partindo da ideia de que toda transformação é também o abando de uma zona de conforto, tanto faz se para pessoas ou empresas, deixar de dizer que um sabão lava mais branco e passar a afirmar que “se sujar faz bem” é uma sacudida de comunicação considerável, um daqueles momentos de “frio na barriga” para executivos e gestores de marketing, antes de se optar (ou não) pela adoção da nova assinatura.
No mundo das marcas é comum dizer que o posicionamento que demonstra potencial é aquele em que se pensa: “ainda não estamos preparados para isso”. É o que gera impulso para o lançamento de alvos a frente e estimula todo o time corporativo a abandonar fórmulas automáticas, em busca da evolução pretendida.
OMO assumiu esse risco desde 2003, quando o manifesto “Porque se sujar faz bem” foi lançado no Brasil e em 2004 no mercado global. Ao adotar o foco em atributos emocionais satélite, ligados indiretamente ao seu universo de atuação a marca inovou, obteve destaque positivo, mas também teve que aprender a dialogar sobre assuntos estranhos ao seu campo de atuação como desenvolvimento infantil ou criação de filhos, temas complexos que envolvem aspectos culturais enraizados e demandam conhecimento específico.
Excluindo-se as grandes marcas, a maior parte das empresas ainda trabalha sua comunicação com ênfase no atributo funcional dos produtos, nesse caso a eficiência da remoção de manchas e a brancura, mas deposita pouca energia ao campo conceitual, onde crenças são compartilhadas (aspiracional) e laços afetivos são construídos (emocional). E nesse processo é natural que erros e acertos sejam cometidos.
Conteúdo da campanha de OMO #momentosquemarcam no You Tube e Facebook que gerou polêmica sobre as fronteiras na forma da criação dos filhos.
COMUNICADO URGENTE PARA PAIS E MÃES ⛔OMO convoca pais e mães a fazerem recall de todas as brincadeiras que reforcem clichês sobre gênero. Meninas podem, sim, se divertir com minicozinha, miniaspirador e minilavanderia, mas também podem ter acesso a fantasias de super-heróis, carrinhos velozes e dinossauros assustadores. E meninos também devem ter toda a liberdade para brincar de casinha, trocar fraldas de bonecas e ter uma incrível coleção de panelinhas. 😀⚽🚀🏄⛺ Porque mais importante do que o brinquedo é a brincadeira, a participação dos pais nesse processo e os momentos que vão marcar a vida delas para sempre. Junte-se à OMO na campanha pelo direito de toda criança de se sujar e brincar livremente. Compartilhe seus #MomentosQueMarcam ao longo da semana com a gente. Não deixe o Dia das Crianças passar em branco.
Posted by OMO Brasil on Friday, October 6, 2017
A postagem de OMO, que tem o Dia das Crianças como pano de fundo, atingiu até o momento mais de um milhão de visualizações nos canais digitais da marca, e se baseia em um trocadilho com o conceito de “recall”, no qual convocava de maneira lúdica os pais a abrirem mão de brincadeiras que reforçam clichês de gênero, uma ampliação do discurso iniciado há mais de uma década, focado no conceito de “viver o momento sem preocupar com a sujeira”.
De maneira geral o post da afirma que “mais importante do que o brinquedo é a brincadeira, a participação dos pais nesse processo e os momentos que vão marcar a vida delas para sempre”. No canal da marca no Youtube, que já passa de 513 mil visualizações pode-se observar um termômetro do número de Likes (19 mil) dos Dislikes (162 mil). Um dos fatos que ajudou a potencializar as reações de indignação foram os comentários do músico Kiko Scornavacca (KLB), que chegou a chamar a marca de “anticristo” e, embora apagado pouco depois, ganhou destaque também notícia na mídia tradicional.
O fenômeno pode ser explicado justamente pela tendência da “ampliação do horizonte” das marcas (aspiracional e emocional), tomando posições e emitindo opiniões cada vez mais inseridas no cotidiano das pessoas. Hoje, oque se observa é que o papel desses produtos na vida de muitos segmentos da população vai além de uma relação de consumo prático e passa a ocupar lacunas na educação, como no caso da proposta de OMO, em áreas específicas do conhecimento e contribui até mesmo na aceitação psicológica e social, como na campanha “Encontre a sua Mágica” do desodorante Axe de 2016:
Campanha Global de Axe tocava em questões de gênero e aceitação no universo masculino, mas não teve tanta repercussão no Brasil
Inspiração e Transpiração!
O grande X do debate do ponto de vista da comunicação é se preparar para o tamanho do desafio ao se hastear e sustentar bandeiras de propósitos e manifestos. O primeiro passo é entender que definir o posicionamento não é nem 10% do caminho, mas que os esforços de desdobramento, manutenção e diálogo permanente é que são o foco do sucesso, dos eventuais deslizes e até mesmo do fracasso.
Além disso, o que se observa hoje é uma banalização de termos como: brandcontent, in bound marketing, marketing de conteúdo, comunicação por causa, Advocacy, etc. Nesse aspecto temos dois fenômenos igualmente prejudiciais: 1. Empresas menores contratam “pedaços” de serviços, geralmente visuais ou superficiais que pouco se sustentam 2. Grandes marcas investem pesado em pesquisa e na criação de conceitos consistentes e proporcionalmente menos na formação de equipes multidisciplinares para a defesa e manutenção das grandes ideias criadas.
Existe ainda uma terceira via, em que podemos enquadrar o caso de OMO, quando o conceito é ousado e sólido, cumpre seu papel de aumentar a relevância da marca, segue sendo praticado e aprimorado por anos e atinge o objetivo final de gerar relevância e inspirar o debate público sobre temas pertinentes, mesmo que de forma polêmica.
E justamente nesse ponto que estamos observando o ajuste fino de até onde as marcas irão por seus “ideais” propostos quando isso começar eventualmente representar perdas potenciais de consumidores. Esse é um lado que muitas corporações se esquecem quando pensam em “ampliar os horizontes” e posicionar suas marcas além: toda escolha é também uma renúncia, e cedo ou tarde o embate surgirá.
Fabricio Trevisan é especialista em Comunicação Corporativa, consultor de Branding e autor da coluna Branding, Consumo e Negócios da EXAME.com